Uma porta fechada que nos deixa a imaginar

Pedro Chamberlain
37 min readDec 30, 2020

De 12 a 14 de Março de 2004, Pedro Costa ofereceu um curso intensivo de cinema na Escola de Cinema de Tóquio. O presente texto é a transcrição de seus seminários (perguntas e respostas foram omitidas). Publicado originalmente no catálogo da “Retrospectiva: Pedro Costa, Sendai Meediatheque, 2005”, o presente texto foi editado e traduzido para o português, em 2007, quando o forumdoc.bh.2007 fez a primeira retrospectiva dedicada a Pedro Costa no Brasil.

Primeiro, eu queria agradecer a algumas pessoas — vai ser um pouco como o Oscar, mas é assim mesmo. Queria agradecer à minha mãe, ao Sr. Yano e ao Sr. Matsumoto¹, porque eles são as duas pessoas mais importantes para mim, pelo menos já há algum tempo. Eles me deram uma boa justificativa para algo que eu pressentia— que talvez eu amasse o Japão e não o soubesse. Assim como no cinema, devemos conhecer pessoas, pessoas reais, em carne e osso, para acreditar neste amor. É claro que agradeço a todos os outros no belíssimo folheto que vocês publicaram e que me dá grande prazer e honra. Tudo isto é para dizer que agradeço àqueles que conheço agora e não conhecia antes, e isso tem algo a ver com o que eu gostaria de dizer a vocês hoje, amanhã e depois de amanhã — simplesmente, que podemos conhecer as coisas através do cinema. Como eu, por exemplo, eu amava o Japão e sabia algumas coisas sobre o Japão, sem nunca ter estado aqui antes.

Eu conhecia o Japão dos filmes, sobretudo dos três diretores mais conhecidos na Europa — a saber, Mizoguchi, Ozu e Naruse. Conhecia o Japão através deles, estes que estão mortos, que são de outro tempo, mas já o amava, à distância — e isso também é muito importante no cinema, o amar à distância. Havia coisas no Japão que eu nunca havia visto nos filmes de Ozu ou Mizoguchi ou Naruse, e que eu continuo a não ver no Japão. Aqui, me lanço a um assunto bastante complexo, pois há coisas que estes diretores, ou os outros grandes diretores que não conheço, esconderam de mim, aspectos do Japão que não me mostraram. Hoje eu estou no Japão e ainda não os vejo. Ou seja, às vezes no cinema, é tão importante não ver, esconder, quanto mostrar.

O cinema talvez seja mais uma questão de concentrar nosso olhar, nossa visão das coisas. É o que os grandes diretores, como estes três japoneses, estão fazendo. Eles não estão mostrando o Japão — eles estão condensando algo. Em vez de dispersar sua mente, seu coração e seus sentidos, eles estão concentrando sua visão. É o que eu sempre digo: o cinema é feito para concentrar nossa visão. Concentrar significa também esconder. É um clichê dizer que o Japão é como os filmes de Ozu, e a história do Japão é a mesma que nos filmes históricos de Mizoguchi. Agora compreendo e sinto melhor o Japão (a mesma coisa: compreender é sentir e sentir é compreender). Por exemplo (e não riam agora), tenho a impressão de que não vejo mulheres grávidas nas ruas do Japão, e entendo isso depois de ter visto os filmes de Ozu. Eu sei o que significa não ver uma mulher grávida nas ruas de Tóquio.

Nos filmes de Ozu, ele nos dá pistas para entender que isso está escondido. Ou seja, Ozu me preparou para ver esta ausência de mulheres grávidas. Assim, às vezes um diretor que é muito realista, trabalhando quase em modo de documentário como Ozu, às vezes ele faz filmes também para esconder algo. Há um segredo em algum lugar em seus filmes, e para afirmar certas coisas ele deve esconder outras. Talvez seja necessário sair um pouco do Japão, porque o que vou dizer pode deixá-los desconfortável, não sei… mas para mim, os verdadeiros documentários japoneses são feitos por Ozu. Todas as pessoas que conheço no Japão, todos os meus amigos japoneses, eu conhecia antes, através dos filmes de Ozu. O que acabo de dizer, Ozu escreveu em seu diário. Ele diz: “Eu nunca inventei um personagem. Em meus filmes, eu faço cópias de meus amigos”.

Tudo isso é para começar a dizer o que eu acho que o cinema realmente faz bem, o que ele tem como função final e, em primeiro lugar, que não é artístico ou estético. Para mim, a função primária do cinema é nos fazer perceber que alguma coisa não está justa. Não há aqui distinção entre ficção e documentário. O cinema, no primeiro momento em que foi visto e filmado, buscou mostrar algo que não era justo. O primeiro filme mostrava uma fábrica, as pessoas que deixavam a fábrica. Era semelhante a uma fotografia, que é também algo muito próximo do nosso mundo. É como tirarmos uma fotografia como prova de algo que vimos, alguma coisa que não está em nosso pensamento, mas à nossa frente, algo da realidade.

A primeira fotografia impressa nos jornais mostrava ao mundo os cadáveres da Comuna de Paris, exibia os corpos dos “Communards”. Então, você começa a perceber que no primeiro filme exibido vemos pessoas saindo de uma prisão, e na primeira foto publicada num jornal, pessoas mortas que tentavam mudar o mundo. Quando falamos desse cinema — ou da fotografia, do documentário ou da ficção –, estamos falando de seu princípio realista. É de certa maneira uma constatação de que o primeiro filme e a primeira fotografia são alguma coisa da ordem do terrível. Não são histórias de amor, são inquietações. Alguém usou uma câmera buscando refletir, pensar e questionar. Para mim, há nesse gesto, nesse desejo — o gesto de se fazer um filme ou uma fotografia, ou um vídeo –, algo muito forte, que nos diz: “Não esqueça”. Como todo primeiro gesto, o primeiro filme, a primeira fotografia e o primeiro amor são sempre os mais fortes, sempre aqueles que não esquecemos.

O problema veio depois, porque depois desse primeiro filme, depois de A saída dos operários da fábrica Lumière (La Sortie de l’Usine Lumière à Lyon, 1895), realizado pelos Lumière, houve um segundo filme, novamente trabalhadores deixando a fábrica, realizado pelos mesmos irmãos Lumière. É aqui que as coisas se degeneram, saem do controle, tornam-se complicadas, porque os Lumière não ficaram satisfeitos com a forma como os trabalhadores saíram de sua fábrica (eram donos da fábrica). Disseram aos trabalhadores: “Tentem agir de uma maneira mais natural”. Eles dirigiram os trabalhadores. Assim, perdeu-se o primeiro gesto, esse primeiro ato de amor — era, então, um ato de amor, mas também de censura –, que tinha a força de um primeiro olhar. Então, eles dirigiram os trabalhadores, disseram: “Você, à esquerda; você, à direita… você, você pode sorrir levemente, e você também… você, siga com sua mulher até ali…” Era a mise-en-scène. A ficção nasceu quando um senhor deu ordens aos seus empregados, a um trabalhador. É evidente que o primeiro livro de regras do cinema foi um roteiro de produção — um roteiro é sempre um livro de leis, de regras. No roteiro de comédias eram apontados quanto se custava uma atriz para representar uma jovem, um ator para representar um amante, ou um pai que somente bateria na cabeça de seu filho. Esse foi o primeiro roteiro.

Ao mesmo tempo, ou pouco depois, filmes foram também realizados sem roteiro, e estranhamente esses filmes ainda existem nos museus do Cinema. Estou falando dos filmes eróticos. É como se os primeiros filmes de ficção (tal como entendemos um filme de ficção) com um roteiro, uma história de amor e personagens que conversam, fossem comédias românticas. Podemos, ainda, dizer que os primeiros filmes sem roteiro, consequentemente o documentário, são talvez filmes amadores, vagamente secretos, pornográficos.

No começo do século, em 1900, estavam, de um lado, os primeiros diretores que escreveram ficção e os roteiros diziam o quanto custavam as coisas — era realmente econômica a história de amor, ou uma comédia romântica, ou um melodrama. Do outro lado, havia os diretores que filmavam sem roteiro, que também filmaram histórias de amor, quero dizer, o gesto de amor num filme erótico ou pornográfico, porém sem roteiro. Havia já, então, pessoas que
mostravam coisas, ficção; mostravam uma história de amor, uma garota, um pai, uma mãe, um final feliz. Havia já, por outro lado, pessoas que também mostravam coisas, o gesto de amor, alguém transando. O que interessa aqui é que documentário e ficção no cinema nasceram ao mesmo tempo, com a mesma ideia de amor. Exceto que, por um lado, começou como uma espécie de economia, que depois se tornou uma indústria, e então uma necessidade; tornou-se uma lei de mercado. Mesmo que esse seja apenas um dos aspectos do cinema nos primórdios de Hollywood, ele continua presente ainda hoje. Havia, ainda, filmes sem roteiro, sem um mercado aparente, sem uma indústria, filmes amadores, que eram realizados em casa e que também eram, sobretudo, filmes de amor, porque eram filmes eróticos, filmes familiares, que, no entanto, continuaram a ser somente o gesto de se fazer um filme pelo filme. Era, então, necessário que houvesse pessoas que pudessem ligar essas duas coisas.

No começo do século, houve pessoas que foram bem-sucedidas em incidir alguma ficção no documentário e um pouco de documentário na ficção e, consequentemente, um pouco de dinheiro na esfera privada e um pouco da esfera privada no dinheiro. Podemos dizer que os primeiros diretores foram aqueles que sintetizaram os filmes de ficção e documentário, ou seja, que criaram uma síntese entre o quase privado — o filme documentário –, realizado em sua própria esquina, numa aldeia, em casa, e o filme feito em público, em que se mostrava tudo. Essa síntese entre o público e o privado aconteceu com Griffith, que realizou um filme de guerra que era também um filme pornográfico. Griffith foi bem-sucedido em combinar sexo e terror num mesmo plano. Isso aconteceu em O Nascimento de uma Nação (The Birth of a Nation, 1915) e em Intolerância (Intolerance: Love’s Struggle Throughout the Ages, 1916). Esses filmes transmitem uma forte sensação de que as paixões e os terrores dos homens levam a duas coisas: amor e guerra.

Griffith percebeu que o cinema poderia mostrar coisas que todos conhecem e que querem reconhecer e, ao mesmo tempo, não revelar certas coisas que são de extrema violência, que devem permanecer veladas. Griffith foi o primeiro a compreender e a trabalhar com a ideia de que o cinema é uma arte que alcança seu paroxismo com a ideia da falta, com a ideia do cinema como uma arte da ausência. Para dar um exemplo simples: vocês assistiram a um filme meu chamado Ossos (1997). O que não está em Ossos, entre muitas outras coisas, são as drogas. Há outra ausência no filme, e essa ausência é você. No entanto, Ossos termina exatamente como o filme A Rua da Vergonha (赤線地帯, 1956), de Mizoguchi: há uma jovem que cerra a porta e lhe contempla, e a porta é fechada sobre você. Isso quer dizer que você não pode entrar no filme. A partir desse ponto lhe é vedada a entrada. Ou, de outro modo, é melhor que você não entre no filme, nesse mundo. Mizoguchi fez isso em respeito ao Japão, em relação à prostituição (à prostituição universal, não especificamente japonesa), porém, ele foi mais longe na significação dessa miséria extrema: como um homem pode se impor sobre outro, ou como um homem pode se impor sobre uma mulher, ou, no fundo, o que podemos infligir sobre nós mesmos. Penso que o que Mizoguchi quis dizer nessa sequência final foi: “A partir daqui este filme não é mais possível, vai se tornar tão insuportável que talvez não haja mesmo um filme”. Depois de fechada a porta, um filme não é mais possível. É terrível, então, não entre. É uma porta fechada para você. Ossos termina com uma porta fechada. Eu não sabia enquanto filmava essa sequência que estava a pensar na jovem que fecha a porta. Era um final, mas eu não havia pensado em Mizoguchi. Eu havia assistido a todos os filmes dele, mas naquele momento eu não sabia disso. Após isso o filme me veio — algo que Mizoguchi não poderia fazer, creio.

Depois disso, eu não sei se Ossos havia se tornado um documentário ou se era ainda ficção, no entanto, sei que há uma porta fechada que nos deixa a pensar. Como vocês viram, Ossos é um filme que vem de coisas muito familiares, coisas que você pode facilmente reconhecer. Vem de Chaplin, dos melodramas do princípio do cinema: um garoto com uma criança que não tem o que comer, a rua, carros velozes, pão, uma prostituta, uma cozinha, tudo isso que era o cinema no seu princípio. Mesmo assim, tende fortemente ao documentário, porque foi feito com não atores, pessoas que estão muito próximas daquilo que representam. O garoto é realmente pobre; a dona de casa, uma dona de casa; a vizinhança é uma vizinhança real. Não estamos num estúdio, porém, mesmo com o desejo de ser algo próximo ao documentário, é, contudo, a ficção o que sustenta, o que o
salva, enfim. Ficção é sempre uma porta que queremos abrir ou não — não é um roteiro. Devemos entender que uma porta serve a entradas e saídas.

Acredito que hoje, no cinema, quando uma porta se abre, é sempre algo de falso que se apresenta, pois diz ao espectador: “entre neste filme e você ficará bem, você viverá uma boa experiência”, mas ao final o que se vê nesse gênero de filme não é mais do que você mesmo, sua projeção. Você não vê o filme, você vê a si mesmo. Ficção no cinema é exatamente isto: você ver a si mesmo numa tela. Você não vê nada mais, não vê o filme, não vê o trabalho, não vê pessoas que fazem coisas, você vê a si mesmo, e toda Hollywood se baseia nisso.

É muito raro hoje que um espectador assista a um bom filme, ele está sempre a ver a si mesmo, a ver o que deseja ver. Ele só assiste a um filme quando este não permite que ele o entre, quando há uma porta que lhe diz: “Não entre”. O espectador só assiste a um filme se algo na tela resiste a ele. Se ele pode reconhecer tudo, vai se projetar no filme, então não poderá mais ver as coisas. Se ele assiste a uma história de amor, verá sua própria história de amor. Não sou o único a dizer que é muito difícil ver um filme, mas quando digo “ver”, é realmente ver. E isso não é uma piada, pois você pensa que vê filmes, mas você não vê filmes, você vê a si mesmo. Parece estranho, mas posso lhes assegurar de que é exatamente isso que acontece.

Ossos, 1997

Ver um filme significa não chorar junto ao personagem que chora. Se não entendemos isso, então não entendemos nada. Por isso falei sobre portas que se fecham. A meu ver, há alguns filmes que são como portas, ainda que neles não haja portas, filmes que se assemelham a portas que não permitem nossa entrada como protagonistas. Mantemo-nos à margem. Vemos um filme e somos alguma coisa diversa dele. Há, então, duas entidades distintas. Alguns filmes fazem essa separação, como em Ozu, Mizoguchi ou Naruse, e muitos outros, mas faço referência aqui aos japoneses. Essa porta é absolutamente necessária. Não é uma peça de propriedade privada, isto é, não é fechada de uma maneira autoritária. Podemos abri-la ou fechá-la, a escolha é nossa. No cinema, sempre a escolha é do espectador. Se você decide assistir a O Último Samurai (The Last Samurai, 2003), vai assistir a O Último Samurai e sabe que isso será penoso; você é japonês, e mesmo assim vai assistir ao filme. Tenho certeza que irá. É como junk-food, que faz com que você a deseje, e você come, mesmo sabendo que lhe fará mal. Isso é o que chamo de filmes com portas abertas. Assim é o mercado. A porta que leva ao McDonald’s está sempre aberta. Então, um filme como Late Spring (晩春, 1949) ou An Autumm Afternoon (秋刀魚の味, 1962) não estão completamente abertos. De forma semelhante, Ossos é um filme que cerra levemente a porta. Um filme que vela certas coisas. Ele lhe diz que você pode sentir dor, mas não lhe diz tudo.

Não sei se vocês já ouviram dizer, mas há uma palavra de exaltação, um elogio de Mizoguchi a Ozu que é muito bonito e que diz respeito a isso. Um dia, um jornalista perguntou a Mizoguchi se ele gostava dos filmes de Ozu, ao que ele respondeu: “Claro”. Então o jornalista pergunta: “Por quê?”. E ele responde: “Porque acredito que o que ele faz é muito mais difícil e misterioso do que o que faço”. Esse é um elogio enorme, pois vocês sabem melhor do que eu que Mizoguchi é considerado um diretor poético e misterioso, e Ozu, muito colado ao chão, um diretor muito realista. É Mizoguchi quem diz: “O que esse senhor faz com essas portas é muito mais difícil do que o que estou fazendo”. Mais uma vez, as portas! Isso é lindo, porque Mizoguchi é o diretor dos mistérios, dos segredos, enquanto Ozu é o diretor das portas, das janelas, das entradas e saídas, do casamento, de coisas muito primordiais. É como se Mizoguchi dissesse: “Eu, que invento o mistério com toda essa névoa, não sou nada próximo a um homem que filma portas e ruas laterais”. Isso é muito mais difícil e misterioso. Essa é a afirmação de um gênio. Esse é, para mim, o maior elogio que um diretor pode fazer a outro e a mais bonita definição de documentário, de ficção, de realismo e imaginação.

Vou resumir isso, é muito simples. Espero que vocês concordem comigo. Mizoguchi, Ozu, Griffith e Chaplin são os maiores diretores de documentário e, consequentemente, os maiores diretores da vida, da realidade. São diretores que velam, encobrem coisas e que fecham as portas. E vocês podem abri-las, por vezes. De novo, abrir as portas desse tipo de filme é difícil, perigoso.

Algumas vezes, quando pensamos que mostraremos tudo, que faremos um documentário para mostrar tudo, na verdade não mostramos nada, não vemos nada, estamos dispersos somente. É absolutamente necessário que estejamos à margem, não na tela. Nunca chore ou sofra junto ao personagem que sofre na tela, nunca. Quando fazemos isso é exatamente o mesmo que fazemos quando vamos ao McDonald’s. Vocês sabem disso muito bem, para todos aqueles, aqui, que já foram infiéis aos seus parceiros, que traíram alguém, que viveram um problema emocional, naquele momento você sabe que está sendo estúpido, covarde, ruim. De minha parte, choro e sou sempre mais profundamente afetado e movido pelo amor de um casal no século XV ou XVI do Japão — uma coisa completamente abstrata para mim. Sou mais afetado por isso do que por um ataque terrorista apresentado na televisão, como o ataque de ontem em Madri.

Por vezes, uma única palavra pode matar. Não sei se pode salvar, mas uma única palavra pode fazer algum bem quando bem pronunciada, bem acabada, bem pensada, e dita no momento certo. Essa palavra está nos filmes de Mizoguchi, Ozu, John Ford. Essa palavra não está nos documentários televisivos ou nas reportagens. Um único gesto ou olhar de um ator pode dizer muito mais sobre sofrimento, miséria ou alegria do que um documentário que mostra “tudo”.

Os diretores de verdade não distinguem entre documentário e ficção. Nunca em minha vida me coloquei as questões: “Estou fazendo um documentário ou uma ficção? Quais as formas para se realizar um ou outro?”. Essas definições não existem. Filmamos a vida, e quanto mais fecho portas, quanto mais veto aos meus espectadores o prazer de se verem na tela — pois não desejo que isso aconteça –, mais terei um espectador que se posiciona contra mim, talvez mesmo contra o filme, mas ao menos estará, assim espero, desconfortável e em guerra. Ou seja, esse espectador estará situado num estado de dificuldade. Não é bom que alguém se sinta confortável o tempo todo. Então, para mim, toda a história do cinema, toda a música, todo o trabalho realizado pelos homens naquilo que chamamos de arte — esse trabalho opera como trens que se locomovem paralelamente à vida, e que nunca devem cruzá-la.

Realizar filmes é um trabalho, um tipo de função comparável ao trabalho de se ver filmes. Assistir a um filme é tão trabalhoso quanto filmar um. Por exemplo, é muito difícil assistir a filmes do Ozu, realmente assisti-los na perspectiva de que são, na verdade, documentários sobre a humanidade, sobre as paixões. Há sempre um detalhe que é japonês, uma pequena área na terra — mas é somente um detalhe — que é uma garrafa amarela, não uma garrafa verde, um detalhe japonês. O que importa aqui é que se trata de um documentário sobre o que os homens fazem a outros homens. Para mim é um detalhe, que Ozu ocorreu de ser japonês. Pessoalmente, eu acho que ele é português… porém, quando realizamos o que chamamos documentário, estamos imersos num pensamento nacionalista.

Se você vai a um festival de cinema de documentários, digamos em Yamagata, há filmes do Chile, da Argentina, etc. E vamos já assistir a um filme chileno. Não é que o problema das minas e dos trabalhadores no Chile não seja importante, especificamente, e particular ao Chile. No entanto, em geral são filmados de uma maneira pobre ou vistos de uma maneira anacrônica, vistos sem aquilo que provém de um artesão, um artista, ou um diretor — como a paciência, ou outras qualidades da profissão. O prazer de fazer um filme está em fazer um filme e não em mostrar um problema. A razão primeira de se fazer um filme é o prazer de fazê-lo, o prazer do trabalho. Se não há prazer no trabalho, não há nada. Assim, qual seria, então, a mais relevante característica de um documentário? É perceber que a pessoa que o realizou fez um bom trabalho, que ela desenvolveu e fez esse trabalho, esse é o primeiro ponto. Um filme é sempre um documentário sobre sua própria realização.

Aqui, direi que todo filme dirigido por Ozu e Mizoguchi é um filme que diz respeito, sobretudo, a artesãos, ao prazer de se trabalhar, e esse trabalho é algo de bom, e o trabalho bem realizado é belo. Isso diz tudo. Um trabalho bem feito é mais significativo do que um bom tema. Por exemplo, no trabalho e no prazer que compartilhei com outros quando Ossos foi realizado, minha função era, primeiramente, criar um filme interessante e bem feito; e também realizar um filme conjuntamente com pessoas que não sabiam nada sobre cinema. Esse desejo gerou um filme que é, espero, moralmente e cinematograficamente interessante. Todavia, não o é porque versa sobre a miséria ou o sofrimento, mas porque é construído de uma maneira que acredito ser a mais justa, a mais correta.

Então, para finalizar essa história sobre documentário e ficção — para vocês, estudantes de cinema, ou pelo menos interessados em vocês mesmos –, nós nunca devemos nos perguntar se o trabalho que por ora realizamos trata-se de um documentário ou uma ficção, isso não interessa como problema. Essa é uma questão de ordem teórica, mas não é uma questão que devemos colocar a nós mesmos. Ao final os críticos dirão “isso é uma ficção”, porém essa diferenciação não existe para mim, não deveria sequer existir. Acredito ser essa uma maneira complicada de se começar uma discussão.

Depois de Ossos, realizei um filme chamado No quarto da Vanda (2000). Todos os jornalistas, japoneses, americanos, ingleses, perguntam-me: “Você vê esse filme mais como ficção ou como documentário?”. Digo por vezes que essa questão aponta para outra coisa, esconde uma outra questão, qual seja: “Isso é verdade ou mentira?”. Não sei se isso é compreensível, mas imaginemos que você seja próximo a Johann Sebastian Bach, e que você esteja vivendo um problema romântico. Bach não liga para sua namorada, para seus problemas, ou por qualquer situação emocional. Ele não se mistura, em absoluto, com problemas privados. No meu ver, Bach age como um diretor de documentário, alguém que quer manter distante qualquer tipo de sentimento do seu trabalho.

Acredito que o cinema tem um grande poder de projeção em duas direções. Há algo que sempre vai e vem, algo que deixa a tela em sua direção e algo que vem de você em direção à tela. Essa é uma questão ligada ao medo, que amedronta, mas que é também a diferença entre grandes filmes e grandes diretores e aqueles que são medíocres. Diretores medíocres tiram vantagem do medo presente na tela. É um jogo de sombras, de projeções: o medo. Quando se apagam as luzes, amedrontamo-nos. O diretor ruim, seja de ficção ou documentário, brincará com nosso medo levianamente. “Medo”, “desejo” e “projeção”, como vocês sabem, essas três palavras são comumente utilizadas na psicologia e na psicanálise. Eu particularmente acredito que um filme não deve se transformar numa sessão de psicanálise, não se deve psicologizar. Quanto mais um filme mergulha na psicanálise, mais confusas ficam as pessoas.

Vocês conhecem os filmes de Chaplin da época d’O Vagabundo (The Tramp, 1915)? Não são muitos. Pensei em exibir um pouco de Chaplin, porque foi o primeiro que trabalhou com tudo que descrevo aqui: documentário, ficção, medo, desejo. Chaplin é, acima de tudo, o único diretor que foi bem-sucedido, no mesmo sentido que Picasso foi bem-sucedido. Como disse Chaplin: “Ganhei minha vida e me tornei rico fingindo ser um homem pobre”. Isso é importante, porque ele foi o único que ganhou muito dinheiro, realmente muito, trabalhando sempre sobre o tema da falta: falta de bens, dinheiro, comida, amor. E, quanto mais filmes fez sobre a falta, mais dinheiro, mais comida, mais garotas ganhou… Não somente isso, mas também foi visto, compreendido e amado por todo o mundo. Ele alcançou muito mais do que qualquer outro artista no cinema. Qualquer um que chegue a isso deve ser cinematográfica e moralmente o maior, no documentário, na ficção, no melodrama, no western ou em qualquer gênero, porque fez de sua vida o oposto de seus filmes. Ele fez tudo o que não funcionou em sua vida funcionar nos filmes. Gostaria de ter mostrado a vocês Chaplin como exemplo daquele que considero o maior e melhor dos esquizofrênicos. Há uma frase famosa do poeta francês Rimbaud que diz: “O outro sou eu” [Je est un autre]². Este é Chaplin: “Eu sou o outro”. Ele é grandioso, porque, com efeito, ele é duplo, senhor e escravo, artista e público, ele é tudo isso de uma só vez. Por essa façanha, ele levou o cinema ao máximo que este poderia ir na direção da vida, e ao mesmo tempo na direção daquilo que seria o sonho da vida.

Pensei em mostrar um filme de Chaplin sobre boxe, mas não o encontramos, encontramos um outro filme que também é sublime, O Vagabundo. Gostaria que vocês o assistissem para entenderem a ideia do que acabamos de falar, a ideia de documentário-ficção. Aí então vocês me dirão onde alguma vez viram árvores, portas, carros ou animais como aqueles. Asseguro a vocês que é raro se ver uma porta que seja uma porta, um cão que seja um cão, uma nota de dinheiro que seja dinheiro como se é mostrado nesse filme de Chaplin. Eu lhes darei 10.000 yens se me disserem que “uma vez viram uma porta mais significativa que essa de Chaplin”. É uma aposta. Há já nesse filme, um dos primeiros de Chaplin, uma forma de apresentar as coisas, objetos, árvores, dinheiro, carros, uma maneira de representá-los, uma maneira condensada, tão concentrada que hoje nos é incômodo ver uma nota de banco nas mãos do vagabundo, machuca-nos ver o carro que passa, você se aterroriza com o carro…

Este tipo de coisa que fazemos em relação ao cinema, o que chamamos de curso ou seminário, ou o que quer que se chame isso em japonês, é um processo difícil. Frequentei uma escola de cinema em Lisboa, onde vivo, com a idade de vocês, entre 20 e 30 anos. Naquele tempo, eu era um pouco desconfiado em relação ao cinema. Estava mais envolvido com música e entrei nessa escola porque estava um pouco perdido em relação ao que fazer da vida. Então, comecei a ver coisas nos filmes, no cinema, que me afetaram sem que eu percebesse. Eu estava numa escola de cinema e achava que havia alguma coisa ambígua nesse tipo de seminário. É da escola e do diretor que se espera ouvir coisas sobre mise-en-scène, montagem, direção de atores, pois, claro, podemos aprender alguma regras, técnicas básicas de câmera, som e montagem e a história do cinema. No entanto, tudo aquilo que diz respeito às sensações e aos sentimentos — e aqui, com o risco de parecer fora de moda –, gostaria de insistir no fato de que o cinema é feito, sobretudo, de sentimentos — e, de novo, estamos sobre um terreno perigoso, porque não sei se consigo transmitir isso a vocês. Ou você tem isso ou pode aprendê-lo, é de certa forma uma técnica. No fundo, ser um estudante de cinema é um trabalho muito solitário, pois significa trabalhar sobre seus próprios sentimentos. Para ser bom, você precisa trabalhar sobre seus próprios sentimentos. Por exemplo, quando entrei para a escola de cinema, minha formação era em música. Eu tocava um pouco de violão e foi no tempo em que o rock estava se tornando agressivo. Então, quando entrei para a escola, já estava um pouco revoltado contra o que as pessoas viriam a me dizer. Eu sabia muito bem que entrava na escola pronto para dizer “não” aos professores, a ser do contra. Certo, eu aprenderia como fazer cinematografia, como captar áudio, como usar uma mesa de montagem, mas ninguém poderia me dizer como sentir ou como transformar esse sentimento em cinema. Não há professor que possa lhe ensinar como fazer isso. Por alguma razão quero dizer a vocês: “não deem muito crédito ao que digo! Não sou um professor”. Resistir um pouco — isso me é útil. Estava dizendo a vocês sobre meu começo na escola de cinema, no mundo do cinema, sobre essa postura de resistir ao mestre, ao professor, de resistir à autoridade, ao conhecimento — isso porque acredito que um dos pilares da prática do cinema seja a resistência, o resistir a tudo.

Não me incomodo com as metáforas — metáforas são ruins em um filme –, mas acredito que encontramos uma boa metáfora aqui, nesta escola. Quando o Sr. Matsumoto me disse que essa escola foi um dia um banco, lembrei-me de um velho filme de Lubitsch chamado Ladrão de Alcova (Trouble in Paradise, 1932 ). Há no filme um momento em que o personagem vai a um banco e está tão desconfortável, tão deslocado, que, em vez de assinar o cheque como deveria, escreve uma carta de amor. É uma cena lindíssima, porque nos mostra uma contradição, escrever uma carta de amor em um banco! Então, minha metáfora é que vocês estão em uma escola de cinema num prédio bancário, e isso é um problema…

Com base na ideia de estarmos em um banco, gostaria de falar mais uma vez sobre Chaplin, porque tem tudo a ver com isso. Acredito que esse filme seja uma arte que pode lutar contra os excessos, contra a inflação, contra o excesso de dinheiro, de imagens ou efeitos. Ao contrário, deveria ser menos, menos e menos. Não estou a dizer sobre minimalismo, mas devemos encontrar dentro de nós o sentimento justo, essencial, talvez indistinto, algo que lhe faça voltar o olhar a você mesmo, para que você não se perca e não se deixe capturar por aquilo que infla, porque bancos dizem respeito à inflação.

Entendemos algumas coisas muito rapidamente. Chaplin, por exemplo, o personagem do vagabundo. Em diversos filmes, tão logo o vagabundo entre em um hotel de luxo ou em um banco, é imediatamente expulso. Vemos isso em vários filmes de Chaplin: tão logo o personagem entra, é rejeitado, alguém o manda embora. Não é por acaso que ele assim o faça. Isso significa que ele quer nos dizer que o cinema pertence às ruas. O cinema nasceu nas ruas e se mantém nelas junto àqueles que estão vulneráveis. Essa não é uma posição militante. O cinema se mantém vivo junto às pessoas que pedem poesia e não dinheiro. Vai se manter junto àqueles que sentem, e não junto aos banqueiros.

Para entender o que nos diz Chaplin, pense em O Vagabundo, que é magnífico. Um vagabundo é um mendigo, um indigente, um sem-teto a perambular pelas ruas, que é sua casa. O céu é seu teto, e há uma estrada que percorre. O que Chaplin quer nos dizer é que todos nós devemos manter nossos sentimentos muito aguçados, que possuímos um vasto espectro de sensações. Se não sentimos nada, não podemos fazer com que as técnicas de produção funcionem, porque a técnica — montagem , cinematografia, som — está também repleta de sentimentos. Se não colocarmos afeto na tecnologia, ela não terá uso.

Chaplin é extremamente rico em emoção e sentimentos — do desespero à alegria, todos os sentimentos possíveis –, e é por isso que ele pode imergir seu método de direção em tamanha emoção. Ele é o maior ator no sentido físico. Ele é um grande dançarino, um gênio na atuação. Todo seu corpo é brilhante. Chaplin tem duas características que devemos observar, e para tal, decidi mostrar a vocês duas de suas cenas. Ele inventou vários princípios e regras de montagem, de posicionamento de câmera, técnicas que são básicas para o cinema. E somente o foi capaz porque era rico de afetos e sentimentos que desejava nos transmitir. Uma coisa não existe em detrimento da outra. Um bom técnico, um bom artesão, apresenta — chamaremos aqui de ética — uma boa posição ética.

The Tramp, 1915

Em O vagabundo, um dos primeiros filmes em que esse personagem aparece, Chaplin nos apresenta quase tudo o que irá nos mostrar ao longo de sua carreira como diretor. Ele apresenta as mais fragilizadas, as mais desesperançosas pessoas. Ele já havia, então, desenvolvido vários princípios de filmagem, formas de mostrar as coisas de uma maneira muito simples, quase abstratas. Vocês irão perceber que há sempre uma escala de planos médios. Na tela, ele tenta enquadrar as pessoas quase em sua totalidade, mostrando todo o corpo. Vocês também assistiram a um trecho de A Condessa de Hong Kong (A Countess from Hong Kong, 1966), o último filme do diretor. Vou lhes resumir o fim da vida de Chaplin, como ele terminou muito rico, porém infeliz, por ter sido impedido muitas vezes de trabalhar, principalmente na América.

Vocês assistiram a um de seus primeiros filmes e parte de seu último trabalho. Gostaria de mostrar a vocês um trecho de A Condessa de Hong Kong que é muito engraçado. É uma maneira de mostrar como Chaplin continuava a lutar, mesmo no fim de sua vida; continuava a lutar contra a arrogância. Ele tomou dois dos grandes astros de seu tempo, Marlon Brando e Sophia Loren, colocou-os num quarto sem portas, e criou um jogo de portas. Ele se manteve fiel aos seus princípios, realizando um filme com muito pouco, com homens, com pessoas, um casal, e uma espécie de quarto. O filme se passa num quarto, em um barco, somente isso. A partir daí, vamos trabalhar somente com isso. Essa é uma tarefa difícil.

A Condessa de Hong Kong pode parecer superficial, banal. É uma brincadeira que já vimos milhares de vezes, mas na qual há alguma coisa de vital, de essencial. Então, volto a essa história de se resistir à morte de todas as maneiras possíveis. Mesmo que haja somente duas ou três portas e duas grandes estrelas, Chaplin é capaz de colocá-los em seus lugares, fazer com que atuem como idiotas, enfim, como somos todos nós — pessoas simples e um tanto estúpidas, que abrem e fecham portas. É isso a vida, um abrir e fechar de portas. Isso é o que ele nos diz, e é de uma grande simplicidade. Como todos os grandes artistas em seus últimos trabalhos, Chaplin alcança uma certa linha pura, muito clara, muito japonesa. É comparável ao último filme de Ozu, ou John Ford. Um traço. Esses filmes falam sobre uma única coisa: a vida.

O último filme de Chaplin foi realizado quando ele estava velho. De maneira similar, falamos do velho Ozu, do velho John Ford. De uma certa maneira, o diretor precisa ser um pouco velho para fazer cinema. Devemos ser um pouco velhos, todos nós. Vocês, de 20, 25 anos, quando vão fazer uma cena com seus atores em frente o Monte Fuji, devem ter 20 e 80 anos ao mesmo tempo. Ou seja, todos os sentimentos do mundo devem atravessar seu plano.

Estou falando sobre essa linha, que todos os grande artistas alcançam ao final de suas vidas. Finalmente, eles descartam tudo o que é superficial, tudo o que concerne à psicologia, para chegar a algo mais fundamental. O filósofo Gilles Deleuze tem escrito um pouco sobre cinema e diz uma coisa muito bonita a respeito da velhice. Ele diz que um homem velho é alguém que não necessita de nada além de si mesmo.³ Quando chegamos ao que chamamos velhice, estamos apenas velhos. Apenas isso. De alguma maneira nos tornamos mais atentos, pois estamos velhos. Não precisamos seduzir, não precisamos mais dos efeitos. Ser um pouco velho, penso, é algo de necessário no cinema. Ser somente, não brincar com a sedução, ou fazer filmes repletos de efeitos, cheio de alusões engenhosas…

Isso é um diretor. Vocês, que estão começando a fazer filmes, devem manter um pouco d’O Vagabundo em vocês e também, desde já, começar a ter um pouco da Condessa de Hong Kong. Vocês devem carregar sempre a extrema juventude do vagabundo, que quer se posicionar contra a sociedade e dizer que estamos nas ruas, que temos o céu e pertencemos à humanidade; e devem, também, começar a ter algo da Condessa de Hong Kong, um quê de muito velho e amargo, a fim de dizer o que ele nos diz nesse filme, que a sociedade o abandonou, que não mais se interessa por ele. Talvez isso seja diferente aqui no Japão, porque a relação dos japoneses com a velhice é completamente diversa. Como Deleuze coloca muito bem: um homem velho não é somente alguém que é apenas velho, e apenas isso, é também alguém que foi desprezado pela sociedade. Na Europa, a sociedade não se interessa pelo velho. No Japão talvez seja diferente. Isso é exatamente o que vemos em A Condessa de Hong Kong. Chaplin realiza esse filme no período das super-produções americanas, mas estava já à margem da sociedade. Realiza esse filme com duas portas, em seu pequeno quarto. Ele não liga a mínima para a sociedade.

Fazemos filmes como membros de uma sociedade, embora haja muitas pessoas que fazem filmes, ou veem filmes, nos dias de hoje e que imaginam que vivemos em Marte ou num planeta longínquo, ou onde quer que seja. Mas não, vivemos numa sociedade, japonesa, portuguesa, inglesa, mas numa sociedade, e no planeta Terra. Não é aí, enfim, onde reside a sociedade? O que acontece nessa sociedade, a nossa? Penso — e creio que Chaplin, John Ford, Ozu, Mizoguchi e todos os grande diretores concordariam — que em nossa sociedade fazem-se negócios. É isso o que acontece. Há negócios injustos, seja no sentido de injustiça social ou no sentido de desarmonia.

Parece abstrato, mas na verdade não é. Se retomarmos a questão do trabalho com sentimentos, diria que uma coisa que não podemos fazer em cinema é entrar no ramo de venda de sentimentos. O que quero dizer com isso, com negociar sentimentos? Cruamente falando, todos os filmes que são realizados hoje na América negociam nossos sentimentos. Diretores deveriam nos dizer: “não podemos tirar vantagem do sentimento das pessoas”. Quer dizer, uma imagem não é como uma nota de yen ou um dólar. A imagem é algo diverso, que possui um valor real. Dinheiro não tem valor.

Uma imagem, um som, o olhar de um ator ou o choque entre dois planos de uma sequência não podem ser como moeda, um ato comercial ou como quando vamos a um café, onde oferecemos alguma coisa e recebemos outra em troca. Se isso é cinema, desculpem-me, isso é pequeno, medíocre. Uma imagem e um som juntos devem ser como as coisas primeiras do mundo. Assim simples: devem ser como uma explosão. Você ouve um som, vê uma imagem, um ator, e diz a si mesmo: “Ah, nunca vi algo assim na vida, que coisa incomum, este é meu mundo, minha sociedade, e eu não percebia. É tão estranho”.

Vocês, diretores que querem fazer filmes, devem trabalhar de forma a fazer cada plano, cada imagem, cada fala de um ator e cada som de forma que se tornem o primeiro plano que existiu, o primeiro som que se ouviu. Isso nada tem a ver com originalidade. Na verdade é justamente o oposto, é trabalhar com os mais antigos sentimentos, como fez Chaplin. Ele trabalhou e trabalhou e trabalhou para nos mostrar sentimentos como se fosse a primeira vez.

Além do mais, grandes diretores não são nunca originais. Os mais interessantes não fazem floreios, não utilizam efeitos. São discretos, quase anônimos, sem estilo praticamente. Eles nos confrontam. Pensem em John Ford: ao final de sua vida, ele era muito pouco interessante, quase anônimo, como Chaplin ou Ozu. Isso não tem nada a ver com ser mais esperto que outrem, porque senão estariam no ramo de vendas de sentimentos, sendo competitivos. Assim, chegamos à conclusão de que isso é ao mesmo tempo muito simples e complexo, quer dizer, há coisas que as pessoas fazem umas às outras e que posso fazer com o outro o que o outro pode fazer comigo: o medo, o terror extremo, a tortura, o caminho ao amor absoluto. Bondade e maldade não estão no céu ou no inferno, mas, sim, entre os homens. E o cinema existe também para mostrar isto, que podemos ver o que não funciona, que o mal está entre você e eu, entre um outro alguém e eu. Ao vermos o mal na sociedade, podemos buscar o bem. Vocês viram isso em O Vagabundo. Ele é muito sensível. Ele quer ser feliz, está buscando alguma coisa, anda para frente.

Disse que ele anda, que procura, como em uma pesquisa, como algo quase científico. Um diretor tem também algo de cientista, devemos ser pesquisadores do bem e do mal, porque, sendo um pouco científicos em nossa pesquisa, chegaremos a alguma conclusão. Podemos chegar a algo muito simples, bem material, por exemplo, que o bem e o mal não estão no céu ou no inferno, mas entre nós. E, se ocorre entre nós, entre os homens, pode ser captado por uma câmera de cinema, podemos ter uma prova do mal que você me faz, ou do bem que lhe faço. Quando fazemos isso, e o fazemos bem, podemos ir ao céu ou descer ao inferno.

A beleza do cinema está em sua materialidade. Fazemos matéria com os corpos, e, de certa forma, alcançamos um certo misticismo. Os maiores filmes são os mais realistas e não realistas, os mais naturalistas e supranaturais, os mais ateus e religiosos simultaneamente. Divagando, brevemente: havia um velho professor de cinema ministrando um curso de direção. Ele mostrou o filme A Palavra (Ordet, 1955), de Dreyer, a seus alunos. Num dado momento, alguns alunos riram durante a projeção. Ao final do filme o professor disse: “Olhe, se vocês começarem a rir cada vez que ouvirem a palavra ‘Deus’, nunca farão um filme”.

Conto essa história porque cinema é uma profissão muito real e séria. Por “séria”, entendam “pesada” — algumas vezes o peso das coisas pode ser insustentável. O peso dos sentimentos é algo a ser lidado com balança e senso comum, então nunca devemos rir quando alguém fala sobre Deus ou Diabo. Com efeito, quando se falamos sobre Deus ou Diabo em cinema, estamos dizendo sobre o bem e o mal, sobre as pessoas, enfim; estamos dizendo sobre nós mesmos, sobre o Deus e o Diabo em nós, porque não há um Deus sobre o céu e um Diabo sob a terra.

Todas as coisas à nossa frente, todos os temas que buscamos filmar em nossas vidas como diretores são sempre sérios, mesmo as comédias ou as gags filmadas por Chaplin. Todas são sempre coisas muito sérias, que, no fundo, estão ligadas ao bem e o mal. (…)

Estou a falar novamente sobre resistência: resistir ao medo, resistir à morte. Em cinema, resistimos. É o material mesmo que resiste; vemos isso nas sequências. Há coisas que resistem em relação a outras: uma imagem que resiste a outras imagens, um som que resiste a outro som. Quando digo “resiste”, digo “luta”, porém não é uma violência… bem, há uma certa violência, mas não a violência que impomos a nós mesmos. É preciso que fique claro, há uma forma de violência que vem com o princípio do mundo, do fogo. Há também outra, social, que deve ser evitada o mais fortemente possível, também pelo cinema.

No filme que fiz sobre os Straub vocês podem ver que existe uma tensão aguda na sala de edição, entre Danièle e Jean-Marie, que passa definitivamente pelo medo. Algumas vezes, Jean-Marie sentia-se amedrontado, por isso, sai. Ele diz, sem exatamente o dizer: ”Danièle, salve-me, salve esta imagem, salve este filme. Estou com medo. Vou sair por um instante.”. Há uma tensão extrema no filme, uma enorme resistência.

Há, por exemplo, a resistência à ideia inicial, que é um pouco ilusória. Eles dizem: “Vamos cortar… não, deixe isso para mais tarde, vamos trabalhar um pouco mais”. Aqui, temos um outro tipo de resistência: a resistência imposta pela máquina, pelas ferramentas dos diretores. Fiz filmes, incluindo esse sobre os Straub, utilizando uma pequena câmera — a mesma que tenho aqui, uma Panasonic. Meu outro filme, No quarto da Vanda, foi realizado em certo grau contra esta câmera, eu resisto um pouco a esta câmera, pois não faço o que os gerentes da Panasonic, em seus arranha-céus de Tóquio, esperam que eu faça com ela. Querem que eu a mova por aí, e eu não quero movê-la. Isso é resistência.

Tenho a impressão de que essas pequenas câmeras vêm com uma etiqueta que diz seu preço, “3 CCD’s e Optical Zoom”, e também uma etiqueta invisível — embora muito clara para mim –, que diz: “movimente-me, movimente-se, você pode fazer tudo comigo”. Isso não é verdade. Não faça isso com sua câmera ou gravador de som, não faça o que querem aqueles que a fabricam. Comprei esta Panasonic, mas não vou fazer o que quer a Panasonic. Coisas são usadas para trabalhar, câmeras, câmeras pequenas, são muito úteis e práticas, acessíveis, mas veja, é preciso trabalhá-las bastante, e trabalho é o oposto de conforto. Conforto é a ideia primeira, tal como a ausência de resistência.

Assim, posso ensiná-los o ofício de fazer filmes, porque é um trabalho que dá trabalho. Sabemos que o ato de trabalhar é difícil, sabemos que é durante o trabalho que as coisas acontecem. É durante a montagem, por exemplo, que está o trabalho da montagem. Trabalhei bastante para realizar um filme sobre trabalho, um filme sobre os Straub, e fiz isso para mostrar o que não posso ensiná-los aqui, o que acontece na prática. Quando encaramos o material, quando estamos frente ao filme que vamos cortar, é que tomamos decisões. Não é antes, na teoria, ou em nossas cabeças que iremos realizar filmes. Sempre fazemos filmes com pessoas, com atores, técnicos, colaboradores, amigos — e algumas vezes inimigos –, e é neste momento que um filme se realiza, no presente, então não é agora que vou dizer a vocês como são as coisas. Não posso dizer a vocês: “Seu filme está cortado de maneira imperfeita, filmado de maneira inadequada, etc.”. Esses são comentários menores. O que realmente acontece aqui é que você sobrevive a um estranho e denso momento e você filma inadequadamente, é isso o que acontece. É o que penso, e não sei como dizer mais do que isso.

Fiz um filme sobre o cinema, sobre os Straub, para mim mesmo, para os outros, para vocês. Trata-se de um filme sobre uma dimensão muito material, concreta e ao mesmo tempo muito misteriosa do cinema. O filme pretende tentar explicar esse mistério, a fim de mostrar a dificuldade do fazer cinema. Não é um dogma; não é uma pequena câmera que se movimenta; não é realizado como se fosse a vida. É laborioso, assim passa a se assemelhar à vida.

Um filme pede bastante paciência, sangue, suor, lágrimas, mas fatiga começar a representar alguma coisa próxima à vida. Veja Bresson. Ele nos apresenta nosso mundo ao mesmo tempo em que este nos parece estranho. É estranha a maneira como as pessoas se movem nos filmes de Bresson. Andam de maneira estranha, seus gestos são muito rápidos ou lentos. Aí está o trabalho. Esse é nosso mundo e ao mesmo tempo nos parece abstrato. Cinema não é exatamente vida. Ele trabalha com ingredientes da vida que, então, organizamos, damos a eles funções diversas da vida. Iremos vê-los sob uma luz diversa. Não é a vida, mas ao mesmo tempo é feito de seus elementos, o que é algo bastante misterioso e por vezes um tanto belo. Um diretor deve viver em tensão todo o tempo, mas isso é complicado, porque simplesmente não podemos fazer isso. Filmes devem ser tensos, porém os diretores são humanos somente. Não podemos ser tensos todo o tempo, pois teríamos que ouvir a tudo, ver tudo, todo o tempo. Para começarmos a ver o que está acontecendo, precisamos ver tudo. Como diz Cézanne, devemos ver o fogo que se esconde em alguém ou numa paisagem. Devemos lutar pelo que descreve Jean-Marie Straub: se não há fogo em um plano, se não há nada ardendo em seu plano, então ele é inútil. Em algum lugar do plano, algo deve estar em chamas. Esse fogo deve estar sempre presente no quadro, é a carta de amor no banco. Poucas pessoas perceberão essa carta de amor e ainda menos irão escrever uma carta de amor em um banco. Então, para finalizar a metáfora, eu diria que meu trabalho como diretor e o de vocês, como estudantes e futuros diretores, é este banco, aqui. Seu trabalho é continuar tentando escrever cartas de amor e não cheques. Algumas pessoas não percebem seu trabalho. No entanto, resistimos e continuamos a ir a bancos para escrever cartas de amor.

Talvez seja hora de dizermos “adeus”… vou deixá-los em boa companhia, pois trouxe comigo uma pequena peça desse grande diretor chamado Cézanne — alguém que morreu tentando pintar uma montanha –, de quem trouxe também algumas palavras sobre a profissão e nosso trabalho. Cézanne morreu em campo, pois chovia e fazia frio, e ele estava velho, mas não se movia. Tentava resistir à chuva e ao frio. Deixou-nos, então, essas palavras, essas impressões sobre o trabalho que devemos realizar. Deixou-as, e Danièle e Jean-Marie as utilizaram num filme muito bonito que aconselho vocês a assistirem (no Athénée Français, imagino, o único lugar onde podemos assistir a tal filme) chamado Cézanne (1989). Vou deixá-los com esse filme. Desculpem-me se não fui bastante claro, e espero, um dia, finalmente, ver e ler suas cartas de amor.

Um tema, veja lá bem, é isto…(Ele juntou as mãos, separou-as com os dez dedos abertos, depois, lentamente, muito lentamente, voltou a juntá-las, apertou-as, apertou-as firmemente, entrelaçando-as). É isso que se deve tentar alcançar. Se uma mão for segurada muito alta ou muito baixa, perde-se tudo. É preciso que não haja nenhuma malha lassa demais, nenhum buraco por onde a emoção, a luz, a verdade, se escapem. Você precisa entender que eu trabalho em toda a tela, em tudo de uma só vez. Com um só impulso, com fé inabalável, aproximo-me de todos os pedaços dispersos. Tudo o que vemos desmorona, desaparece, não é mesmo? A natureza é sempre a mesma, mas nada do que nos aparece se mantém. Nossa arte deve render a emoção de sua permanência junto com seus elementos, a aparência de todas as suas mudanças. Ela deve nos dar um gostinho de sua eternidade. O que há debaixo dela? Talvez nada. Talvez tudo. Tudo, compreende? Por isso, eu reúno suas mãos errantes. Pego algo à direita, algo à esquerda, aqui, ali, em todo lugar, seus tons, suas cores, suas nuances, coloco-as para baixo, as aproximo. Elas formam linhas. Tornam-se objetos, rochas, árvores, sem o meu planejamento. Elas assumem volume, valor. Se estes volumes, estes valores, correspondem em minha tela, em minha sensibilidade, aos planos, às manchas que tenho, que estão ali diante de nossos olhos, então minha tela juntou suas mãos. Ela não vacila. As mãos não foram unidas nem muito alto nem muito baixo. Minha tela é verdadeira, compacta, cheia. Mas se houver a menor distração, se eu falhar um pouco, sobretudo se eu interpretar demais um dia, se hoje me deixar levar por uma teoria que vai contra a de ontem, se eu pensar enquanto pinto, se eu interferir, zás!, tudo será perdido.

O que você quer dizer com ‘interferir’?

O artista não é mais que um receptáculo de sensações, um cérebro, um aparelho de gravação. Mas se interfere, se ousa, aparelho fraco que é, para intervir deliberadamente no que deveria estar traduzindo, sua própria mesquinhez entra em cena. O trabalho se torna inferior.

Para você o artista seria, em suma, inferior à natureza?

Não era isso que eu queria dizer. A arte é uma harmonia paralela à natureza. O que podemos dizer aos tolos que nos dizem: ‘o pintor é sempre inferior à natureza’? Ele é paralelo a ela. Desde que, é claro, ele não interfira deliberadamente. Sua única aspiração deve ser o silêncio. Ele deve sufocar dentro de si as vozes do preconceito, deve esquecer, sempre esquecer, estabelecer o silêncio, ser um eco perfeito. Então, na parte mais sensível de seu ser, toda a paisagem será gravada. Fixá-la na tela, exteriorizá-la, para isso ele terá que usar de seu ofício. Mas este ofício também é respeitoso, está pronto para obedecer, para traduzir inconscientemente, familiar como é com a linguagem, o texto a ser decifrado, os dois textos paralelos: A Natureza como se vê e a Natureza como é sentida, aquela que está ali… (ele apontou para a planície verde e azul do quadro), o que está aqui… (ele bateu na testa), ambas devem se fundir para suportar, para viver uma vida meio humana, meio divina, a vida da arte, escute-me… a vida de Deus”.

A paisagem é refletida, humanizada, e ela pensa em mim, eu a objetifico, eu a projeto, eu a fixo em minha tela. Além disso, o puro cheiro azul de pinho, que emana ao sol, deve casar. O cheiro fresco e verde dos prados na manhã com o cheiro das pedras e a fragrância do mármore distante de Saint-Victoire. Isto deve ser transmitido, através de cores, sem literatura. Quando a sensação está em sua plenitude, ela se harmoniza com todo o ser. O turbilhão da natureza, profundamente dentro do cérebro, é resolvido no mesmo movimento e tudo é percebido com seu próprio lirismo: os olhos, as orelhas, a boca, o nariz… Por exemplo, se eu fechar meus olhos e imaginar as colinas de Saint-Marc, o cheiro de escabiosa vem a mim.

Mont Sainte-Victoire, por Paul Cezanné

Transcrição: Valérie-Anne Christen

Tradução para o inglês: Downing Roberts

Tradução para o português: Ana Carvalho e Pedro Chamberlain

¹ Masamichi Matsumoto é o diretor do Centro Cultural Athénée Français, e Kazuyuki Yano é o chefe do YIDFF (Festival Internacional de Documentários de Yamagata) Escritório de Tóquio.

² Carta à Paul Demeny, 15 de Maio de 1871. Rimbaud. Obras Completas: Cartas Selecionadas. Trad. Wallace Fowlie (Chicago: Chicago University Press, 1967), p. 304

³ L’Abècédaire, de Gilles Deleuze (Paris, Editions Montparnasse, 2004)

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